Naquele Outono, lá no interior da terrinha, eram dias ressequidos e empoeirados...
Tínhamos que limpar a casa mais de uma vez ao dia, e, depois manter as janelas fechadas, porque por vezes, acontecia uns redemoinhos brabos que traziam para dentro de casa , o maior poeirão do mundo... e entrava até nas comidas, caso estivessem destampadas, ou nos pratos. Assim , não tinha jeito, só fechando mesmo a casa.
Andávamos à rua tipo mulheres do deserto, com os rostos cobertos, e de óculos escuros, além de ter que usar óleo de amendoas doce nas pernas , braços e rostos.
Minha mãe, só andava de calças compridas, e, dizia que era também para se proteger do vento.
Foi por esses dias, que meu tio, chegou em casa todo risonho: Nasceria seu filho!
daqui há alguns meses : Sou pai...
Minha tia , que era desconfiada , igual mineiro, olhou-o séria, e disse: Será mesmo?
Grunhindo, ele respondeu, se é: será - e, se não for: vai ser - vou providenciar o registro, assim que o tiver comigo nos braços.
Ela com um olhar apenas o repreendeu, sem encará-lo: Filho de mulher dama! Não tem pai!
Pela expressão dos olhos dele, só não se atracaram porque haviam mais pessoas por perto, e ele, era um cavalheiro - sempre dizia - que jamais bateria numa mulher (sorte a dela).
Depois dessa notícia - ficamos no aguardo para saber quando o menino nasceria, de maneiras tais, que não conseguiramos fazer as contas - nem ele sabia há quantos meses tinha tido o tal relacionamento com a lady da noite, mas me lembro de vê-lo consultando seus alfarrapos num caderninho azul, em que costumava anotar algumas coisas necessárias, tais como:
Dia 1 de agosto- 8h - Comecei a plantação de quiabo - 50alqueires nas terras de seu Agripino;
Dia 3 de agosto- roçado de seu Miroca - mais as terras da várgem -abóbora, almeirão, agrião, espinafre, milho, girassol, roseira, ervas finas, trançagem, milhomens, arruda femea, trigo, frutas variadas: manga, laranjas, caquis, umbuzal e bananeiras... Total: $ 45mil réis;
Dia 10 de agosto- roçado de seu Ovidio Vitor Hugo + plantação de abóbora, mandioca, soja, feijão, cafézal, e uma horta: 500 alqueires $ 60 mil réis.
E, assim ele ia tomando notas do que fizera e do dia, e quanto haviam prometido pagar-lhe.. mas acho que, nem sempre cumpriam o determinado, porque várias vezes, o víamos reclamar que aquele povo não tinha palavra, e que a noite ia tocar fogo na roça de alguns!
Meu avô logo se irritava, e dizia que o entregaria à Polícia, se fizesse coisa errada - que não contasse com ele para acobertar!
Jamais admitiria um filho que praticasse atos ilegais. E blá .. blá ... blá.. etc e tal...
Em vez de ficar na Oficina, fazendo a arte - trabalhando com a madeira, que ao seu entender era melhor do que arar terras dos outros.
Mas, meu tio não gostava de tomassem conta de sua vida, e, na oficina ao lado de casa, seus passos seriam observados, e quando quisesse beber umazinha branquinha, não ia poder...
Assim preferia trabalhar bem longe dos olhos de todos, lá nas roças, em que tinha que atravessar rio São francisco, e dormir por lá semanas... algumas vezes, porque tinha que ver se iria chover, e destruir tudo, ou se as mudas estavam seguras, assim às vezes não o víamos por 6 ou 7 semanas... apenas sabíamos notícias dos outros trabalhadores, que não se importavam de ir e vir para casa todos os dias, mesmo acordando cedinho, de madrugada para atravessar aquele rio cautelosamente, para não assustar as piranhas do local.
Meu tio justificava-se, dizendo que não tinha mulher para obrigá-lo a voltar todos os dias,e assim ficava por lá acampado nas terras do benfeitor, ou de carona em alguma palhoça próxima de um conhecido. Lá tinha tudo: água boa, vento fresco, frutas, carvão, fogareiro, rede pra dormir, cachaça feita na hora, peixe a vontade, prosa de viola , e umas prostitutas que viviam daquele lado servindo aos homens do roçado... entre eles meu tio. Era quase Passárgada!
E, foi, acredita-se numa dessas noites, numa rede que tudo se deu, segundo ele.
A Chica tava grávida, e dizia que o filho era dele...(?!?) quem poderia dizer que sim, ou que não?
Teriam que esperar os nove meses, e ver se a criança tinha alguma semelhança com o pai...porque não havia o teste de DNA.
Mas Miguel não estava desconfiado de nada.. muito pelo contrário, queria ser pai - todos os seus amigos tinham filhos, e ele já estava com quase 40 anos, queria sentir essa sensação também.
Foi ficando por lá dessa vez - até para ficar mais perto da morena... sua bem afeiçoada. A moça na verdade, não era daquelas terras, veio num pau de arara, de lá das bandas de Góias, com uma leva de gente, para mode trabalhar na roça... Só que não aguentando o tranco, resolveu ganhar a vida de outra forma..e, se acostumou a isso..indo se juntar a outras numa palhoça vermelha, lá do outro lado na Ilha - porque as senhoras de cá não as queriam por perto...
E algum benfeitor caridoso, deixou-as morando numa palhoça do outro lado do rio, ao mesmo tempo, que tomavam conta do local, o serviam também...
Eu nunca vi o local, mas meu irmão fora até lá, junto com alguns rapazolas, e meu tio era o intermediador entre eles e as moças do lugar... menos que não fosse a sua preferida!
Não me lembro bem de como se chamava, mas tinha o apelido de Tina.
Ela chegou a vir em casa do meu avô, uma vez, mas diante da cara feia da minha tia, ficou do outro lado da calçada, esperando meu tio se arrumar, pra darem umas voltas na cidade...
A irmã quase o matou.. e, pediu pelo amor de Deus, que nunca mais fizesse tal coisa, indo se queixar com o pai. Ao que ouviu do mesmo: Dai a Cézar - o que é de Cézar, e a Deus - o que é de Deus...
Ela não entendeu nada do que ele disse, e resmungou : Tudo de Nilino tem que ter a bíblia junto! Tô falando uma coisa, vem com outra!? Vixe Maria...Tudo eu que tenho que resolver nessa casa.
E, assim a vida ia fazendo das suas...só sei que meu tio estava feliz, e, isso para o meu avô era o que importava, porque apesar de parecer, o velho tinha uma sabedoria nata, e se preocupava com o seu rebanho (filhos, netos, sobrinhos etc...) queria todos por perto, e, quando algum dizia que ia embora pro Rio de Janeiro, ou Salvador, ou São Paulo - ele até chorava escondido... e dizia que iriam era sofrer nas garras da vida, e que lugar melhor que ali não iriam encontrar..
Os dias iam se passando, já havíamos acostumado a não ver meu tio sempre, mas o importante era saber que estava bem, do modo como escolhera para viver, e que as meninas da ilha , o tratavam bem, agora que se instalara de vez na Palhoça , porque o dono , era seu chegado, e até gostou da idéia dele estar vivendo mais sua morena por lá, assim protegeria mais as moças, e impunha um certo respeito pelas terras dele.
Mas como a felicidade, não é uma coisa infinita... meu tio precisou ficar uns dias em casa, por conta de uma tuberculose que adquirira, e que meu padrinho diagnosticara como grave, e que ele não poderia fazer esforços, muito menos , remar... tinha que ter uma boa alimentação e tomar Penicilina, além de Estreptomicina, beber leite, comer verduras, tomar chás , e ficar deitado de lado que era pra não dar derramamento pulmonar...Avisou na capital, e logo chegaram os medicamentos para uso do paciente..
O coitado do meu tio, ficou tristíssimo...queria por que queria fugir pra ir atrás de sua amada, mas meu avô mandava que vigiassémos o tempo todo, e pôs uma alarme na porta do quarto, assim, toda vez que se abrísse a porta do quarto, o troço disparava, dessa maneira alguém vinha ver se era o paciente tentando fugir pra ver a moça...
Além do mais, mandou a sua jumenta pastar em terras de outrem, e não disse onde que era pra também dificultar a fuga, pois o trajeto até o rio, era feito no lombo da bicha, e depois meu tio , dava um trocado para algum menino, trazer a égua até nossa sua casa, ou ela mesma era solta e voltava sozinha... de tanto que fazia o trajeto, mas meu tio, tinha medo que a roubassem, por isso pagava um menino pra deixá-la lá em casa, que tinha um quintal grande, com milharal, e ele , sabia que ninguém iria maltratá-la.. pois eramos amigos dos bichos, e ela até almoçava junto da gente na grande copa... davamos comida na mão ... ela adorava as espigas de milho, que embora pudesse pegar no pé, preferia comer em nossas mãos, além de ganhar laranja descascada, e melancia partida, na qual comia até a casca!
O diagnóstico caiu feito uma bomba em cima do meu tio, ele mandou meus primos irem até lá o outro lado, pra avisar a namorada, o porque ele não iria lá; mas o meninos disseram que foram, e não a encontraram, aumentando mais ainda a tristeza do tio.
Aonde estaria Tina? será que os meninos foram lá mesmo... ficava a mandar recados para seus amigos de roça, mas eles disseram que não iriam por lá, porque tava um andaço de tuberculose, do outro lado, e não podiam se expor a doença, pois tinham família.
Meu tio pediu ajuda até ao Padre Vítor.. mas esse o maldizeu - mandando que esquecesse a quenga, e que arranjasse uma moça de família para se casar, em vez de ficar de chamego, com mulher dama, ainda mais grávida, sabe-se lá de quem...
Nesse dia pensei que meu tio morreria: tossiu a noite toda, e a febre aumentara, mesmo com os medicamentos, cheguei a me oferecer a ir até o lá... mas claro jamais iria... como se eu tivesse deliberação para fazer alguma coisa aos 10 anos de idade!
Mesmo assim, implorei meus primos que fossem lá novamente, mas ninguém queria ir por lá, por causa da notícia da tuberculose e também já se ouvira falar de hanseníase também naquelas terras!
Falei pro meu tio: Só rezando tio... E ele mesmo descrente e incrédulo, orava fervorosamente para que a sua doença passasse logo, por que não poderia viver sem Tina muito tempo...
Esse período foi de aproximadamente 60 dias, quando numa madrugada, em que todos dormiam, por causa de uma festa que foramos , e chegássemos bem tarde, todos dormiram pesado... meu tio quando saíram, tirou os chocalhos da porta do seu quarto, e deixou-a entreaberta... minha tia passou de mansinho pelo quarto, olhou pra dentro, ele fingia que dormia...e um amigo seu muito chegado, e vendo sua penúria, resolveu levá-lo até a beira do rio.. para que ele atravessasse pro outro lado numa barca que emprestara na confiança, que meu tio cuidaria e voltaria brevemente.
Até a barca do meu tio fora roubada do cais. Nestes dias em que estivera doente.
Assim, ele partiu ajudado pelo tal colega... rumo aos braços de sua amada...
Tossindo muito, foi-se o homem... pelas águas sumiu... silenciosamente, exceto pelos guinchos da tosse, remando com dificuldade, pois a dor era grande, mas não era maior do que a dor da saudade doída de não rever sua mulher.
Não sei pra que ele foi!
Chegou ainda ao amanhecer na palhoça, e como seu quarto - era o último, já do lado de fora, penetrou de mansinho nos aposentos, levando nas mãos um candeeiro a querosene aceso...
Não é difícel adivinhar o que visualizara: A sua cama estava bem aquecida, por outro homem
que ao lado daquela que ele pensara ser sua, dormia o sono dos que gozam.
Que grito de desespero e de dor, não sei bem qual a ordem das coisas!!
O homem pulou em cima dele, jogando-o ao chão, e com uma faca lhe apontava a jugular.
Tina nas costas do cara gritava que parasse!
O resto do povo acordou com os gritos... meu tio pedia que lhe matasse mesmo - assim não iria jamais lembrar da cena... e todas as palavras que deveriam ser pronunciadas num momento assim o foram..
A matriarca do local, se posicionou, e ordenou ao homem que largasse Miguel já! Mas não sem tempo de evitar que o outro lhe ferisse,mas não mortalmente!
A amada, chorava copiosamente, e disse-lhe que lhe falaram que ele havia morrido..e, até por isso ela perdera a criança, que dizia estar esperando! Fato confirmado pela ruiva dona do estabelecimento - que disse ela mesmo ter tirado a criança já morta de dentro da outra, já bem há um mês atrás.
Susto refeito, fizeram nele um curativo compressivo, e colocaram algumas ervas para estancar a hemorragia...
Nesse dia , havia um senhor que mesmo não sendo amigo do meu tio, sabia aonde ele morava, e se comprometeu a levá-lo de volta... até porque a ruiva,não queria ter por lá alguém com tuberculose, como ouvira dizerem....
Tina ainda tentou argumentar que iria com ele... mas ele a olhou firme nos olhos, e disse:Não chegue perto de mim nunca mais... Sei bem que você tomou remédio de mato pra abortar a criança... e, agora entendo o porque!
Alguém chegou com uma caneca de chá com broa de milho, e umas petas, pro meu tio, para tentar mantê-lo restabelecido para aguentar o percurso de volta pra casa...
Ele aceitou... e se despediu de todos muito mau, com uma febre alta...e, o amigo novo, lhe segurava o corpo, pra trazê-lo de volta à casa de meu avô... que a essa altura, já o esperava , pressentindo todo o ocorrido nos seus mínimos detalhes!
Ele chegou, no lombo de um burrico, com o rapaz o puxando, praticamente desfalecido, veio amarrado, no animal porque não conseguira manter-se firme...
Tiraram-no e, o colocaram na cama...ao que desfaleceu, vindo acordar uma semana depois... entrara num estado de coma profunda...talvez até para esquecer do desamor, e da perda do filho... que imaginara ser seu!
Até a próxima.....
Homenagem ao meu tio meninão Miguel - que foi um companheiro de vários momentos.
Fica na Paz do altíssimo tio ... Eu te amo... descanse em Paz...
Tudo valeu a pena...tenha a certeza disso.
Puxa, que pena que ele não viveu a linda emoção de ser pai, de saciar o desejo que ele tinha de registrar o pequeno rebento, carregá-lo no colo e exibi-lo para todos como seu fruto.
ResponderExcluirAlguns sonhos morrem com a gente, uns doem mais e outros doem menos, mas é duro não ver vingar aquilo que se muito anelou.
Despois de uma semana em coma, restou o cicatrizar da ferida deixada por aquela sonhada ausência.
Parabéns, Alicinha, por este resgate familiar.
José Maria Cavalcanti
www.bollog.com.br
ExcluirOlá Cava...
Justamente amigo
Depois desse episódio - ele se tornou menos alegre... mais ermitão, e passou a se isolar das pessoas. Ninguém sabe dizer se amou alguém mais adiante, ele se fechou de certo modo para a vida, e creio para o amor...
A palhoça vermelha pegou fogo, e as moças foram para distante dali o incêndio foi criminal.
Acreditamos que tenha sido a mando da esposa do dono das terras...
Foram mais 13 anos de convivência com meu tio...que voltou a beber bastante, e após meu avô partir ele se viu muito só! um dia faleceu sozinho lá na mesma casa, onde nasceu.
Rezo a Deus que ele tenha um descanso merecido, e pleno das graças divinas, pois o amo ainda hoje!!! sua memória permanece preservada em mim.
Ele antes de falecer ainda segurou meu filho e o beijou - essa foi a última vez que nos reencontramos, antes de sua partida para o além.
Bjssss..
* Obgdu - pela sua visita, e comentário...
Este seu tio devia ser uma figura e tanto. Conheci gente que se casou com uma dama da casa da luz vermelha, não escondia de ninguém, era advogado e trabalhava com telecom. O amor não escolhe com quem você vai formar o par, parece ser involuntário.
ResponderExcluirbeijosss.