Os autores consagrados nos inspira; hoje me veio às mãos um livro chamado: AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS,
Objetiva, Rio de Janeiro,2005 (www.objetiva.com.br
); uma coletânea de crônicas de vários autores, entre eles: Rubens
Braga, Fernando Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Lygia
Fagundes , Rubens Braga , entre
outros...
Encontrei essa graça de texto de Elsie Lessa, que fala exatamente do
modo como eu falo.
Por isso, pedindo permissão à
autora, transcrevo-a para essas
páginas...
“Gente”
De repente, escolhemos a vida de alguém. Era
essa que a gente queria. Naquela casa grande e branca, na rua quieta, na cidade
pequena. Sim, estamos trocando tudo. Era ela que a gente queria ser, aquela
serenidade atrás dos olhos claros, aquela bondade que se estende aos bichos e
às coisas, tão simplesmente. E aquela mansa alegria de viver, aquele risonho
voto de confiança na vida, aquela promissória em branco contra o futuro,
descontada cada dia , miudamente, a plantar flores, a brunir a casa, a
aconchegar os bichos.
Era naquele porto que a gente gostaria de
colher as velas, trocar a ansiedade, a inquietação, a angústia latente e sem
remédio, o medo múltiplo e cósmico, todas as interrogações, por aquela paz.
Acordar de manhã, depois de dormir de noite, achando que vale a pena, que paga,
que compensa botar dois pés entusiasmados no chão. Abrir as bandeiras das
venezianas para que o sol entre, com o gesto de quem abre o coração. Qual é o
hormônio, e destilado por que glândula, que dá a uma mulher o gosto de engomar,
tão alvamente, a sua toalha bordada para a bandeja do café? Há uma batalha bem
ganha, cotidianamente renovada, contra o pó e a traça e a ferrugem que tudo
consomem. Dentro dos muros da sua cidadela, as flores viçam, a poeira foge,
nada vence o alvo imaculado das cortinas, os cães vadios acham lar e dono.
E é
esse um modo singelo mais difícel de ter fé. Cada bibelô tem uma história,
diante de cada retrato há um vaso de flor, para cada bicho há um gesto de
carinho.
“Mulher
virtuosa, quem a achará? Porque o seu valor excede ao de muitos rubis” –
cansei eu de ouvir, na escola dominical, e olho em torno a indagar quantos e
que orientais rubis pagarão aquele miúde, enternecido carinho, que pôs flores
nos vasos e cera no chão e transparência nos vidros e ouro líquido no chá. Oh,
a perdida paz fazendeira deste chá no meio da tarde, que as mulheres do meu
tempo já não sabem o que seja, misturado a este morno cheiro de bolo e torradas
que vem da cozinha! Somos uma geração que come de pé, que trocou os doces ritos
que cercavam o nobre ato de alimentar-se, por uma apressada ingestão de
calorias. Já não comemos, abastecemo-nos como um veículo, como um automóvel
encostado à sua bomba.
Trocamos as velhas salas de jantar por
mesas de abas, que se improvisam às pressas, de um consolo exíguo encostado a
uma parede. E o que sabe de um lar uma criança que não foi chamada, na doçura
da tarde, do fundo de um quintal para interromper as correrias, lavar mal-e-mal
as mãos e vir sentar-se à mesa posta para o lanche , com mansas senhoras gordas
que vieram visitar a mamãe? É a hora dos quitutes, das ingênuas vaidades
doceiras, da exibição das velhas receitas, copiadas em letra bonita de um
caderno ornado de cromos.
Somos uma geração que perdeu o privilégio
de não fazer nada, aquele doce não-fazer-nada que é a mansa hora do repouso, o
embalo da rede na frescura de uma varanda, a quietude ensolarada de um pomar em
que o sono da tarde nos pegou de repente, a hora de armar brinquedos para as
crianças, das visitas que chegam sem se fazer anunciar, pois na certa estaremos
em casa para uma conversa despreocupada e sem objetivo. Somos uma geração de
mulheres que saem demais de casa, para trabalhar ou para se divertir, e perde
metade da vida indo ou vindo para não se sabe onde, fazendo fila para comprar,
tomar condução ou assistir a um cinema. Perdemos o abençoado tempo, de perder
tempo, de não fazer nada, a única hora em que a gente se sente viver. O mais é
a canseira e aflição de espírito.
E foi tudo isso que reencontrei, de repente, na casa grande e branca da
rua quieta.
Elsie
Lessa/Págs 155 e 156.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela presença, caso queira deixe seu comentário.
Até a próxima postagem! ABRAÇOS FRATERNOS ...